Palavras-chave:
- Na Igreja Metodista Unida, “kokwane” adquire um peso teológico e pastoral particular e uma apropriação cultural.
- “Kokwane” elevou o Bispo ao estatuto de “pai do pai”. Diferente do pastor, o Bispo-kokwane é figura de autoridade ancestral e de guardião da fé.
- Os crentes, designados “Muzaya” (netos), são vistos como “matshamela tsomba” (herdeiros legais) de uma herança espiritual que deve ser conservada e transmitida.
- O Bispo, como “kokwane”, é mentor e conselheiro, garantindo a vitalidade da fé e enraizando-a na sabedoria ancestral.
Rev. Naftal Xavier Guambe, um jovem teólogo nascido duma família com raízes Metodistas profundas, pregador, investigador, projectista e líder, aborda com muita paixão, propondo a busca polissêmica da palavra “kokwane” e a sua apropriação no contexto eclesiástico, mostrando como ela define a liderança episcopal numa perspectiva moçambicana. Trata-se de um convite a um diálogo profundo entre cultura e fé com o objectivo de procurar ser uma lente africana episcopal, capaz de lhe dar maior autenticidade no solo moçambicano.
Guambe descreve etapas, dando um panorama sobre a matéria nos termos seguintes: Na diversidade cultural moçambicana, a palavra não é mero instrumento de comunicação, mas um repositório de memória, valores e identidade. A expressão “kokwane!”, dirigida a um Bispo da Igreja Metodista Unida em Moçambique, ultrapassa a simplicidade de um gesto de cortesia. É, antes, uma expressão carregada de sentido cultural e teológico que merece ser explorada.
A Polissemia de “Kokwane” muito além da idade
Entre os falantes de Xitshua, no sul de Moçambique, “kokwane” é uma palavra de carga plurissémica. Literalmente associada à velhice, “kokwane” carrega significados que vão além da idade cronológica. Refere-se à experiência, à sabedoria, à autoridade, mas também à vitalidade e ao carinho. Um “kokwane” é simultaneamente ancião, conselheiro, guardião e refúgio cujas palavras carregam peso comunitário.
Distingue-se, nesse sentido, de “madala”, termo que em certos contextos adquire conotação de fragilidade ou declinação. Enquanto o “madala” pode ser visto como alguém diminuído pela idade, o “kokwane” é imagem de vigor e sabedoria. Ele é respeitado, não apenas pelo tempo vivido, mas pela qualidade da sua trajectória. A palavra de um kokwane é certeira e orientadora; a sua autoridade não se impõe pela força, mas pela estima que inspira.
Liderança comunitária versus formalidade ocidental
A apropriação de “kokwane” sublinha uma cosmovisão moçambicana da liderança. A designação de um Bispo como “kokwane” sugere este ou esta como um sábio, acessível, empático e profundamente ligado à comunidade. A sua autoridade não se impõe pela posição institucional, mas pela confiança e pela reverência. O simbolismo do cordão umbilical aprofunda a compreensão da relação entre Bispo e comunidade.
Por sua vez, a identidade da pessoa de terceira idade no Ocidente e um pouco em outras realidades Africanas é complexa, e não se aplica no contexto religioso, e é marcada por uma coexistência de estereótipos negativos (a velhice associada à decadência física e um momento de descanso, solidão e isolamento afetivo; fragilidade, dependência e carência, e à aposentadoria, levando-o à exclusão social e à desvalorização, terminando por vezes em vida em asilos).
Divergências e nuances na apropriação
Embora consensual em muitos aspectos, o uso de “kokwane” também apresenta tensões. Há divergências sobre a sua origem precisa como título episcopal, o que sugere uma adopção progressiva e orgânica. Além disso, nem todos os crentes usam o termo de forma regular, sobretudo no contexto da expressão portuguesa, o que indica variação linguística e geracional.
O “Kokwane” como refúgio e inspiração
A figura do kokwane evoca o espaço acolhedor dos avós na tradição familiar moçambicana. A casa do “kokwane” é lugar de protecção, mimo e privilégio. É também o primeiro refúgio em momentos de crise, antes mesmo, em várias ocasiões, de se recorrer aos pais. Este estatuto não decorre apenas da idade, mas da confiança gerada por uma vida marcada pela sabedoria e pelo afeto.
Vários testemunhos, por nós entrevistados, confirmam essa percepção: o “kokwane” “gruda todas as pessoas” e é “uma biblioteca de vida”, cujo valor está tanto na experiência espiritual como na social. A sua autoridade é acolhedora, não distante. Ele ou ela guia, consola, inspira e transmite valores, sendo considerado uma bênção viva para a família.
Parentesco materno e transmissão de valores
Outro aspecto importante na compreensão de “kokwane” é a sua relação com o parentesco materno, central em muitas sociedades moçambicanas. Honrar alguém pelo apelido da mãe revela a importância desta linhagem e a legitimidade moral que dela decorre. Assim, “kokwane” não é apenas a designação de um idoso respeitado, mas também símbolo de continuidade familiar e guardião de valores transmitidos de geração em geração.
Essa dimensão fortalece a autoridade do “kokwane”, que não depende de cargos formais, mas da confiança culturalmente enraizada. O seu papel é de ponte entre passado e futuro, preservando a memória e projectando valores para a posteridade.
A Ressignificação religiosa: do Ancião ao Bispo
Quando aplicado ao contexto da Igreja Metodista Unida em Moçambique, “kokwane” adquire um peso teológico e pastoral particular. A ausência histórica de um termo entre os “:matshuas” para designar “Bispo” abriu espaço para uma apropriação cultural. Com a nomeação de Escrivão Anglaze Zunguze, o primeiro Bispo nativo em 1964, surgiu a necessidade de uma palavra que ressoasse com o sentir moçambicano.
“Kokwane” preencheu essa lacuna, adquirindo uma unicidade particular em Africa e no mundo, elevando o Bispo ao estatuto cultural e social de “pai do pai”. Diferente do pastor, tratado como “Baba” (pai), o Bispo “kokwane”, é figura de autoridade ancestral e de guardião da fé. A sua designação não é apenas funcional, mas afetiva, evocando a imagem do avô que acolhe e transmite a herança espiritual.
O Bispo - “Kokwane” como guardião da fé
Na cosmovisão moçambicana, o Bispo - “kokwane” é ancião espiritual conectado aos fiéis pelo “cordão umbilical da fé”. Esta metáfora mostra a ligação vital entre líder e comunidade: o Bispo não apenas administra, mas nutre espiritualmente, como o cordão que alimenta o feto. O Bispo - “kokwane” transmite a seiva da fé, nutrindo espiritualmente os seus netos. Esta nutrição vai além da doutrina: é cuidado, proximidade e exemplo de vida- um verdadeiro cordão umbilical da fé e da herança espiritual.
Os crentes, designados “Muzaya” (netos), são vistos como “matshamela tsomba” (herdeiros legais) de uma herança espiritual que deve ser conservada e transmitida por gerações. O Bispo, como “kokwane”, é mentor e conselheiro, garantindo a vitalidade da fé e enraizando-a na sabedoria ancestral. Assim, a liderança episcopal é compreendida não em moldes administrativos ocidentais, mas como paternidade espiritual e transmissão de legado. Os “matshamela tsomba”, são herdeiros activos e não apenas receptores passivos da fé. Isso implica responsabilidade e compromisso, assegurando que a herança espiritual se mantenha viva e contextualizada.
Hoje temos Bispos feminino e masculino (“os matshamela tsomba”) – Bispa Joaquina Filipe Nhanala e Bispo João Filimone Sambo, que entraram no episcopado mais jovens e que herdaram este legado, inspirados e transformados pelos ensinamentos dos mais velhos e estes são também chamados “vaKokwane”.
Rev. Guambe termina este pensamento dizendo: “o termo kokwane, ressignificado no contexto da Igreja Metodista Unida em Moçambique, é mais do que uma expressão cultural: é um legado espiritual. Ele mostra a capacidade do povo moçambicano de moldar a linguagem da fé a partir da sua própria cosmovisão, inovando e enriquecendo a liderança episcopal com valores de sabedoria, cuidado e comunhão.
Ao chamar os seus Bispos de “kokwane”, a comunidade recorda-lhes o seu duplo papel: líderes espirituais e anciãos da fé. Esta designação lembra que a autoridade verdadeira não nasce do cargo, mas da confiança, da experiência e da dedicação ao serviço do povo. Mais do que um título, “kokwane” é um farol que guia a Igreja moçambicana na construção de uma fé viva, enraizada na cultura, e aberta ao futuro.”
*Ezequiel M Nhantumbo é correspondente da UMCom/UMNews da África lusófona, baseado em Maputo